Os Orisas e a natureza
Reginaldo Prandi
Universidade de São Paulo
Na aurora de sua civilização, o povo africano mais tarde conhecido pelo nome de Yoruba, chamado de nagô no Brasil e lucumi em Cuba, acreditava que forças sobrenaturais impessoais,espíritos, ou entidades estavam presentes ou corporificados em objetos e forças da natureza.Tementes dos perigos da natureza que punham em risco constante a vida humana, perigos que eles não podiam controlar, esses antigos africanos ofereciam sacrifícios para aplacar a fúria dessas forças, doando sua própria comida como tributo que selava um pacto de submissão e proteção e que sedimenta as relações de lealdade e filiação entre os homens e os espíritos da natureza. Muitos desses espíritos da natureza passaram a ser cultuados como divindades, mais tarde designadas Orisas, detentoras do poder de governar aspectos do mundo natural, como o trovão, o raio e a fertilidade da terra, enquanto outros foram cultuados como guardiões de montanhas, cursos d'água, árvores e florestas. Cada rio, assim, tinha seu espírito próprio, com o qual se confundia, construindo-se em suas margens os locais de adoração, nada mais que o sítio onde eram deixadas as oferendas. Um rio pode correr calmamente pelas planícies ou precipita-se em quedas e corredeiras, oferecer calma travessia a vau, mas também mostra-se pleno de traiçoeiras armadilhas, ser uma benfazeja fonte de alimentação piscosa, mas igualmente afogar em suas águas os que nelas se banham. Esses atributos do rio, que o torna ao mesmo tempo provedor e destruidor, passaram a ser também o de sua divindade guardiã. Como cada rio é diferente, seu espírito, sua alma, também tem características específicas. Muitos dos espíritos dos rios são homenageados até hoje, tanto na África, em território Yoruba, como nas Américas, para onde o culto foi trazido pelos negros durante a escravidão e num curto período após a abolição, embora tenham, com o passar do tempo, se tornado independentes de sua base original na natureza. São eles Iemanjá, divindade do rio Ogum, Oiá ou Iansã, deusa do rio Níger, assim como Oxum, Obá, Euá, Logum Edé, Erinlé e Otim, cujos rios conservam ainda hoje o mesmo nome de sua divindade. No Brasil, assim como em Cuba, Iemanjá ganhou o patronato do mar, que na África pertencia a Olocum, enquanto os demais Orisas de rio deixaram de estar referidos a seus cursos
d'água originais, ganhando novos domínios, cabendo a Oxum o governo dos rios em geral e de todas as águas doces. A economia desses povos desenvolveu-se com base na agricultura, caça, pesca e artesanato, com intensa e importante atividade comercial concentrada nos mercados das cidades, para onde acorria a produção das diferentes aldeias e cidades. Podemos ver nessa sociedade em formação um deslocamento dos Orisas do plano dos fenômenos da natureza para o plano da divisão social do trabalho, assumindo os Orisas a característica de guardiões de atividades essenciais para a vida em sociedade. O culto às divindades continuou sendo local, podendo a mesma atividade ser guardada por deuses locais distintos. Só muito mais tarde alguns Orisas foram elevados à categoria de Orisas nacionais. Assim, na agricultura encontramos o culto a Ogum e Orisa-Ocô, enquanto as atividades de caça estavam guardadas por Oxóssi, Logum Edé, Erinlé, e muitos outros Orisas caçadores conhecidos genericamente pelo nome de Odé, que significa Caçador. No Brasil, onde a geografia africana deixou de ter sentido, alguns Orisas de rio, como Logum e Erinlé, ficaram restritos à caça, embora se faça referência também a seus atributos de pescadores, especialmente no caso de Logum Edé. No caso de Ogum, há uma relação direta entre a agricultura e o artesanato do ferro, que permitiu a produção das ferramentas agrícolas, o mesmo ferro com que se fazem as armas de guerra, faca, facão, espada, e que transformou Ogum no deus da metalurgia e da guerra, numa emblemática expansão de um culto que se iniciou em referência ao plano da natureza (o ferro) para depois se fixar no domínio das atividades humanas (agricultura, metalurgia, guerra). A importância do minério extraído da natureza define-se por sua aplicação na cultura e leva à constituição de um culto que ao mesmo tempo deseja propiciar as forças sobrenaturais para garantir o acesso ao minério e o sucesso nas atividades que usam artefatos com ele produzidos. Quanto mais o trabalho se especializava, mais o Orisa se liberava do mundo natural e mais próximo se situava do mundo do trabalho, isto é, do mundo da cultura, das atividades sociais, do mundo do homem, enfim. A antiga religião de caráter animista, ou seja, de crença de que cada objeto do mundo em que vivemos é dotado de um espírito, em algum momento primordial fundiu-se-se com o culto dos antepassados. Podemos definir o culto dos antepassados como o conjunto de crenças, mitos e ritos que regulam os vínculos de uma comunidade com um número grande de mortos que viveram nessa comunidade e que estão ligados a ela por parentesco, segundo linhagens familiares, acreditando-se que os mortos têm o poder de interferir na vida humana, devendo então ser propiciados, aplacados por meio das práticas sacrificiais para o bem-estar da comunidade. Através do sacrifício, o antepassado participa da vida dos viventes, compartilhando com eles o fruto do sucesso das colheitas, das caçadas, da guerra e assim por diante. Embora todo morto mereça respeito e sacrifício, são os mortos ilustres os que se colocam no centro do culto. São os fundadores das antigas linhagens familiares, os heróis conquistadores, fundadores de cidades, o que inclui os falecidos pertencentes à família real, especialmente o rei. Alguns antepassados, sobretudo os de famílias e cidades que lograram expandir seu poder e seu domínio além de seus muros, acabaram sendo hevemerizados, isto é, deificados, ocupando no universo religioso o mesmo status de um Orisa da natureza, muitas vezes confundindo-se com eles. Assim, Xangô é ao mesmo tempo o Orisa do trovão, que rege as intempéries, e o antepassado mítico hevemerizado que um dia teria sido o quarto rei da cidade de Oió. Como rei, é o regulador das atividades ligadas ao governo do mundo profano, do qual é o magistrado máximo, assumindo assim, o patronato da justiça. Muitos reis, míticos ou não, foram alçados à dignidade de Orisa. Por outro lado, muitos Orisas que já mereciam culto ganharam também a conotação de antepassado, especialmente como reis. Como ocorreu com Ogum, lembrado como rei de Irê, e Oxaguiã, rei de Ejibô, entre outros. Ainda hoje no Brasil essas cidades são lembradas nas cantigas que falam de Ogun Onirê, o rei de Irê, e Oxaguiã Elejibô, o rei de Ejibô. Confrarias de sacerdotes especializados também se organizaram em função de divindades relacionadas a atividades mágico-religiosas específicas, como os adivinhadores ou babalaôs, reunidos no culto de Orunmilá ou Ifá, o deus do oráculo, e os curadores herbalistas, ou olossains, dedicados a Ossaim, o Orisa que detém o poder curativo das plantas. Tanto Orunmilá como Ossaim tiveram culto nacional em território Yoruba, uma vez que seus sacerdotes ofereciam seus serviços a todos os que deles precisassem, não estando suas atividades circunscritas aos cultos familiares ou de cidades. Exu, Orisa do mercado e da comunicação entre os deuses e entre estes e os humanos, também ganhou culto sem fronteiras familiares ou citadinas. Com a expansão política de algumas cidades e a incorporação de outros territórios, deuses locais passaram a ter um culto mais generalizado, o que transformou Xangô num deus cultuado em todo o território controlado por Oió, que teve o maior dos impérios Yorubas. Iemanjá, originalmente uma divindade ebgá de rio, cultuada em território de Abeocutá, transformou-se em objeto do culto às ancestrais femininas, sendo homenageada no início dos festejos dedicados às grandes mães ancestrais no festival Geledé, cuja celebração envolve várias cidades. Através da instituição do culto aos antepassados, os antigos Yorubas estabeleceram as bases míticas de sua própria origem como povo, deificando seus mais antigos heróis, fundadores de cidades e impérios, aos quais se atribuiu a criação não somente do povo Yoruba como de toda a humanidade. Dá-se assim a gênese do Orisa Odudua, rei e guerreiro, considerado o criador da Terra, e de Obatalá, também chamado Orixanlá e Oxalá, o criador da humanidade, além de muitos outros deuses que com eles fazem parte do panteão da criação, como Ajalá e Oxaguiã. O contato entre os povos africanos, tanto em razão de intercâmbio comercial como por causa das guerras e domínio de uns sobre outros, propiciou a incorporação pelos Yorubas de divindades de povos vizinhos, como os voduns dos povos fons, chamados jejes no Brasil, entre os quais se destaca Nanã, antiga divindade da terra, e Oxumarê, divindade do arco-íris. O deus da peste, que recebe os nomes de Omulu, Olu Odo, Obaluaê, Ainon, Sakpatá e Xamponã ou Xapanã, resultou da fusão da devoção a inúmeros deuses cultuados em territórios Yoruba, fon e nupe. As transformações sofridas pelo deus da varíola, descritas por Claude Lépine (1998), até sua incorporação ao panteão contemporâneo dos Orisas, mostra a importância das migrações e das guerras de dominação na vida desses povos africanos e seu papel na constituição de cultos e conformação de divindades. Quanto mais os Orisas foram se afastando da natureza, mais foram ganhando forma antropomórfica. Os mitos falam de deuses que pensam e agem como os humanos, com os quais partilham sentimentos, propósitos, comportamentos e emoções. Seus patronatos especializaram-se em aspectos da cultura e da vida em sociedade que melhor atendiam às necessidades individuais dos seus devotos, embora possam manter referências ao original mundo natural (Prandi, 2001). Com a vinda para as Américas, ao processo de antropormofização e mudança ou diversificação do patronato adicionou-se a unificação do panteão, passando Orisas de diferentes localidades a ser cultuados juntos nos mesmos locais de culto, no caso do Brasil, os terreiros de candomblé, ocorrendo mais forte especialização na divisão do trabalho dos deuses guardiões. Assim, Iemanjá, agora rainha do mar, é a protetora da maternidade e do equilíbrio mental; Oxum ganha as águas doces e a prerrogativa de governar a fertilidade humana e o amor; Ogum governa o ferro e a guerra, mas também é aquele que abre todos os caminhos e oportunidades sociais; Xangô, Orisa do trovão, é o dono da justiça. E assim por diante. Como a religião dos Orisas foi refeita no Brasil por africanos ou descendentes que, no século XIX, viviam nas grandes cidades costeiras, ocupando-se em atividades urbanas, fossem eles escravos ou livres, a preocupação com atividades agrícolas era muito secundária, de sorte que os Orisas do campo foram esquecidos ou tiveram seus governos reorganizados. O culto a Orisa-Ocô se perdeu e hoje raramente alguém se lembra de Ogum como Orisa do campo. Também os Orisas da caça perderam com a nova sociedade. Oxóssi ganhou a responsabilidade de zelar pela fartura de alimentos, mas não há mais caçadores para cultuá-lo e muitos Odés foram reagrupados no culto de Oxóssi, como ocorreu com Erinlé e Otim. O grande papel de Oxóssi no Brasil na verdade decorre de sua condição de patrono da nação queto, instituída com a fundação dos candomblés baianos Casa Branca do Engenho Velho, Gantois e Axé Opô Afonjá, e que é uma referência à cidade africana de Queto, hoje situada no Benin, da qual Oxóssi era o Orisa da casa real e onde atualmente está praticamente esquecido. Mudanças recentes nas condições de vida, inclusive em termos de saúde pública, fizeram de Omulu o médico dos pobres brasileiros, mas hoje ele está longe de ser cultuado por causa da varíola, seu domínio original, praticamente eliminada em nossa sociedade.
No Brasil, com a concentração do culto aos Orisas nos terreiros, sob a autoridade suprema do pai ou mãe-de-santo, antigas confrarias africanas especializadas desapareceram, uma vez que o pai-de-santo passou a controlar toda e qualquer atividade religiosa desenvolvida nos limites de sua comunidade de culto. Os Orisas dessas confrarias foram esquecidos ou se transformaram. Assim, com a extinção dos babalaôs, os sacerdotes do oráculo, o culto a Orunmilá praticamente desapareceu, subsistindo marginalmente em alguns poucos terreiros pernambucanos. O oráculo, agora prerrogativa do chefe de cada terreiro passou a ser guardado por Exu e Oxum, que na África já eram estreitamente ligados às atividades de adivinhação. A confraria dos curadores herbalistas, os olossains, também não se manteve nos moldes africanos, ficando os olossains restritos às atribuições de colher folhas e cantar para sua sacralização, tendo perdido para o pai-de-santo as prerrogativas do curador. Em decorrência, o culto de Ossaim ganhou novas feições, ficando mais assemelhado ao culto dos outros Orisas celebrados nos terreiros, podendo inclusive ser recebido em transe como os demais, o que não acontecia na África. Espíritos das velhas árvores foram antropormofizados e iroco, que na África é simplesmente o nome de uma grande árvore, aqui se transformou no Orisa Iroco, que recebe oferendas na cameleira branca e desce em transe, ganhando, cada vez mais, independência em relação à árvore, situando-se, por conseguinte, mais longe da natureza. O desenvolvimento científico e tecnológico, ao promover a expansão do controle da natureza pelo homem, controle que vai desde a previsão das intempéries e catástrofes naturais até a obtenção da fecundação in vitro, passando pela cura da maioria das moléstias, garantindo a redução das taxas de mortalidade infantil, afastando as endemias e epidemias, aumentando a esperança de vida, tudo isso foi desviando cada vez mais o olhar do homem religioso da natureza, uma vez que esta já o preocupa menos, representando menos riscos, menos perigo. Diferentes povos tiveram diferentes preocupações com a natureza. Os Yorubas, como povo da floresta, pouco se interessaram pelos astros, que ocuparam posição importante nos sistemas religiosos de povos que viviam em lugares abertos e altos. Para os Yorubas, as florestas e os rios eram mais importantes que a lua ou as estrelas. Sua semana de quatro dias não tem relação com as fases da lua, que em muitos povos originou a semana de sete dias. Habitando o interior, longe do mar, lhes faltou certamente a observação da maré associada às fases da lua para estabelecer um calendário lunar. A morada dos deuses e dos espíritos dos Yorubas, emblematicamente, não fica no céu, mas sob a superfície da terra.
No Brasil, as referências à natureza foram, contudo, simbolicamente mantidas nos altares sacrificiais, que são os assentamentos dos Orisas e em muitos outros elementos rituais. Desse modo, como a África, seixos provenientes de algum curso d'água não podem faltar no assentamento dos Orisas de rio, confundindo-se as pedras com os próprios Orisas. Pedaços de meteoritos, as pedras de raio do assento de Xangô, lembram a identificação deste Orisa com o raio e o trovão. Objetos de ferro são usados para o assentamento de Ogum. E assim por diante. O candomblé também conserva a idéia de que as plantas são fonte de axé, a força vital sem a qual não existe vida ou movimento e sem a qual o culto não pode ser realizado. A máxima ioruba "kosi ewê kosi Orisa", que pode ser traduzida por "não se pode cultuar Orisas sem usar as folhas", define bem o papel das plantas nos ritos. As plantas são usadas para lavar e sacralizar os objetos rituais, para purificar a cabeça e o corpo dos sacerdotes nas etapas iniciáticas, para curar as doenças e afastar males de todas as origens. Mas a folha ritual não é simplesmente a que está na natureza, mas aquela que sofre o poder transformador operado pela intervenção de Ossaim, cujas rezas e encantamentos proferidos pelo devoto propiciam a liberação do axé nelas contido. Há algumas décadas a floresta fazia parte do cenário do terreiro de candomblé e as folhas estavam todas disponíveis para colheita e sacralização. Com a urbanização, o mato rareou nas cidades, obrigando os devotos a manter pequenos jardins e hortas para o cultivo das ervas sagradas ou então se deslocar para sítios afastados, onde as plantas podem crescer livremente. Com o passar do tempo, novas especializações foram surgindo no âmbito da religião e hoje as plantas rituais podem ser adquiridas em feiras comuns de abastecimento e nos estabelecimentos que comercializam material de culto. Exemplo maior, no Mercadão de Madureira, no subúrbio do Rio de Janeiro, pródigo na oferta de objetos rituais, vestimentas e ingredientes para o culto dos Orisas, mais de vinte estabelecimentos vendem, exclusivamente, toda e qualquer folha necessária aos ritos de Ossaim. Bem longe da natureza. Embora a concepção de Orisa esteja hoje bem distante da natureza, muitas celebrações se fazem em locais que lembram as antigas ligações, como as festas de Iemanjá junto ao mar, como os depachos feitos na água corrente, na lagoa, no mato, na pedreira, na estrada etc., de acordo com o Orisa a que se destinam. Com a recente preocupação com o meio ambiente, o candomblé tem sido muito lembrado como religião da natureza, apontando-se muitos terreiros como modelares na preservação ambiental. Alguns líderes, de fato, tem procurado se engajar em movimentos preservacionistas, alertando os seguidores dos Orisas da necessidade de se defender da poluição ambiental locais usados pela religião, como cachoeiras e fontes, lagos e bosques. Alguns defendem a necessidade do próprio candomblé deixar de usar nas oferendas feitas fora do terreiro e nos despachos material não biodegradável. Nesse clima de "retorno ao mundo natural", de preocupação com a ecologia, um Orisa quase inteiramente esquecido no Brasil vem sendo aos poucos recuparado. Trata-se de Onilé, a Dona da Terra, o Orisa que representa nosso planeta como um todo, o mundo em que vivemos. O mito de Onilé pode ser encontrado em vários poemas do oráculo de Ifá, estando vivo ainda hoje, no Brasil, na memória de seguidores do candomblé iniciados há muitas décadas. Assim a mitologia dos Orisas nos conta como Onilé ganhou o governo do planeta Terra: Onilé era a filha mais recatada e discreta de Olodumare. Vivia trancada em casa do pai e quase ninguém a via. Quase nem se sabia de sua existência. Quando os Orisas seus irmãos se reuniam no palácio do grande pai para as grandes audiências em que Olodumare comunicava suas decisões, Onilé fazia um buraco no chão e se escondia, pois sabia que as reuniões sempre terminavam em festa, com muita música e dança ao ritmo dos atabaques. Onilé não se sentia bem no meio dos outros. Um dia o grande deus mandou os seus arautos avisarem: haveria uma grande reunião no palácio e os Orisas deviam comparecer ricamente vestidos, pois ele iria distribuir entre os filhos as riquezas do mundo e depois haveria muita comida, música e dança. Por todo os lugares os mensageiros gritaram esta ordem e todos se prepararam com esmero para o grande acontecimento. Quando chegou por fim o grande dia, cada Orisa dirigiu-se ao palácio na maior ostentação, cada um mais belamente vestido que o outro, pois este era o desejo de Olodumare. Iemanjá chegou vestida com a espuma do mar, os braços ornados de pulseiras de algas marinhas, a cabeça cingida por um diadema de corais e pérolas, o pescoço emoldurado por uma cascata de madrepérola. Oxóssi escolheu uma túnica de ramos macios, enfeitada de peles e plumas dos mais exóticos animais. Ossaim vestiu-se com um manto de folhas perfumadas. Ogum preferiu uma couraça de aço brilhante, enfeitada com tenras folhas de palmeira. Oxum escolheu cobrir-se de ouro, trazendo nos cabelos as águas verdes dos rios. As roupas de Oxumarê mostravam todas as cores, trazendo nas mãos os pingos frescos da chuva. Iansã escolheu para vestir-se um sibilante vento e adornou os cabelos com raios que colheu da tempestade. Xangô não fez por menos e cobriu-se com o trovão. Oxalá trazia o corpo envolto em fibras alvíssimas de algodão e a testa ostentando uma nobre pena vermelha de papagaio. E assim por diante. Não houve quem não usasse toda a criatividade para apresentar-se ao grande pai com a roupa mais bonita. Nunca se vira antes tanta ostentação, tanta beleza, tanto luxo. Cada Orisa que chegava ao palácio de Olodumare provocava um clamor de admiração, que se ouvia por todas as terras existentes. Os Orisas encantaram o mundo com suas vestes. Menos Onilé. Onilé não se preocupou em vestir-se bem. Onilé não se interessou por nada. Onilé não se mostrou para ninguém. Onilé recolheu-se a uma funda cova que cavou no chão. Quando todos os Orisas haviam chegado, Olodumare mandou que fossem acomodados confortavelmente, sentados em esteiras dispostas ao redor do trono. Ele disse então à assembléia que todos eram bem-vindos. Que todos os filhos haviam cumprido seu desejo e que estavam tão bonitos que ele não saberia escolher entre eles qual seria o mais vistoso e belo. Tinha todas as riquezas do mundo para dar a eles, mas nem sabia como começar a distribuição. Então disse Olodumare que os próprios filhos, ao escolherem o que achavam o melhor da natureza, para com aquela riqueza se apresentar perante o pai, eles mesmos já tinham feito a divisão do mundo. Então Iemanjá ficava com o mar, Oxum com o ouro e os rios. A Oxóssi deu as matas e todos os seus bichos, reservando as folhas para Ossaim. Deu a Iansã o raio e a Xangô o trovão. Fez Oxalá dono de tudo que é branco e puro, de tudo que é o princípio, deu-lhe a criação. Destinou a Oxumarê o arco-íris e a chuva. A Ogum deu o ferro e tudo o que se faz com ele, inclusive a guerra. E assim por diante. Deu a cada Orisa um pedaço do mundo, uma parte da natureza, um governo particular. Dividiu de acordo com o gosto de cada um. E disse que a partir de então cada um seria o dono e governador daquela parte da natureza. Assim, sempre que um humano tivesse alguma necessidade relacionada com uma daquelas partes da natureza, deveria pagar uma prenda ao Orisa que a possuísse. Pagaria em oferendas de comida, bebida ou outra coisa que fosse da predileção do Orisa. Os Orisas, que tudo ouviram em silêncio, começaram a gritar e a dançar de alegria, fazendo um grande alarido na corte. Olodumare pediu silêncio, ainda não havia terminado. Disse que faltava ainda a mais importante das atribuições. Que era preciso dar a um dos filhos o governo da Terra, o mundo no qual os humanos viviam e onde produziam as comidas, bebidas e tudo o mais que deveriam ofertar aos Orisas. Disse que dava a Terra a quem se vestia da própria Terra. Quem seria? perguntavam-se todos? "Onilé", respondeu Olodumare. "Onilé?" todos se espantaram. Como, se ela nem sequer viera à grande reunião? Nenhum dos presentes a vira até então. Nenhum sequer notara sua ausência. "Pois Onilé está entre nós", disse Olodumare e mandou que todos olhassem no fundo da cova, onde se abrigava, vestida de terra, a discreta e recatada filha. Ali estava Onilé, em sua roupa de terra. Onilé, a que também foi chamada de Ilê, a casa, o planeta. Olodumare disse que cada um que habitava a Terra pagasse tributo a Onilé, pois ela era a mãe de todos, o abrigo, a casa. A humanidade não sobreviveria sem Onilé. Afinal, onde ficava cada uma das riquezas que Olodumare partilhara com filhos Orisas? "Tudo está na Terra", disse Olodumare. "O mar e os rios, o ferro e o ouro, Os animais e as plantas, tudo", continuou. "Até mesmo o ar e o vento, a chuva e o arco-íris, tudo existe porque a Terra existe, assim como as coisas criadas para controlar os homens e os outros seres vivos que habitam o planeta, como a vida, a saúde, a doença e mesmo a morte". Pois então, que cada um pagasse tributo a Onilé, foi a sentença final de Olodumare. Onilé, Orisa da Terra, receberia mais presentes que os outros, pois deveria ter oferendas dos vivos e dos mortos, pois na Terra também repousam os corpos dos que já não vivem.Onilé, também chamada Aiê, a Terra, deveria ser propiciada sempre, para que o mundo dos humanos nunca fosse destruído. Todos os presentes aplaudiram as palavras de Olodumare. Todos os Orisas aclamaram Onilé. Todos os humanos propiciaram a mãe Terra. E então Olodumare retirou-se do mundo para sempre e deixou o governo de tudo por conta de seus filhos Orisas. Cultuada discretamente em terreiros antigos da Bahia e em candomblés africanizados, a Mãe Terra desperta curiosidade e interesse entre os seguidores dos Orisas, sobretudo entre aqueles que compõem os seguimentos mais intelectualizados da religião. Onilé é assentada num montículo de terra vermelha e acredita-se que guarda o planeta e tudo que há sobre ele, protegendo o mundo em que vivemos e possibilitando a própria vida. Na África, também é chamada Aiê e Ilê, recebendo em sacrifício galinhas, caracóis e tartarugas (Abimbola, 1977: 111). Onilé, isto é, a Terra, tem muitos inimigos que a exploram e podem destruí-la. Para muitos seguidores da religião dos Orisas, interessados em recuperar a relação Orisa-natureza, o culto de Onilé representaria, assim, a preocupação com a preservação da própria humanidade e de tudo que há em seu mundo.
Referências bibliográficas
ABIMBOLA, Wande. Ifá Divination Poetry. Nova York, Londres e Ibadan, Nok Publishers,
1977.
____. Ifá Will Mend our Broken World: Thoughts on Yoruba Religion and Culture in Africa and
the Diaspora. Roxbury, Massachusetts, Aim Books, 1997.
LÉPINE, Claude. As metamorfoses de Sakpatá, deus da varíola. In: MOURA, Carlos Eugênio
Marcondes de (org.). Leopardo dos olhos de fogo. São Paulo, Ateliê Editorial, 1998.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orisas. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
* Este artigo é um capítulo do livro "Segredos
guardados: Orisas na alma brasileira", de Reginaldo
Prandi, a sair pela Editora Companhia das Letras em
abril de 2005.
www.aguiadourada.com/pdf/natureza.pdf